sexta-feira, 30 de setembro de 2011


O TOCADOR

Era cego. Mas tocava como ninguém. Como ninguém tocara antes.
A monotonia da viagem foi interrompida pelos acordes pungentes da sanfona, levando os passageiros a um mundo longínquo, quando ainda havia tempo para se ouvir música boa e sonhar, mesmo dentro de um ônibus.
Negro, na pele e nos olhos, vestes maltrapilhas, chapéu de couro e uma sanfona, provavelmente seu único tesouro. Este era o personagem mais importante naquele momento. Tocava com uma melancolia que parecia esconder uma forte tristeza interior. Era um grande tocador. Não porque manejava bem aquela sanfona, mas porque manejava bem o estado de espírito das pessoas que, ao ouvi-lo tocar e cantar esqueciam, momentaneamente, as agruras da vida e mergulhavam no som mágico que saía dos seus dedos. A voz lembrava a de outro grande tocador. A música pura, de raízes nordestinas, remexia lembranças, trazia uma nostalgia indizível. Asa Branca era o carro-chefe do repertório.
Coincidência, ou não, parecia com ele. Assim como aquele, não enxergava, porém, neste caso, a cegueira era total. Bobagem. Via com os olhos da alma. Sabia exatamente como iluminar o dia daquelas pessoas. Ou não sabia. Talvez estivesse ali fazendo o que sempre soubera fazer a vida toda, em troca de algumas moedas. Não importa, a verdade é que depois que ele se foi, o ônibus ficou impregnado de humanidade...

INQUIETUDE


A cidade dorme. É madrugada fria. Estou só na minha solidão. Ouço os sons do silêncio. Silêncio vazio. Silêncio ensurdecedor. Busco aninhar-me em mim mesma. Acolher-me é difícil. Fantasmas rondam meu ser, como a querer me devorar. O relógio insiste em marcar um tempo que não passa. Um turbilhão de reflexões invadem-me. Reflexões mudas e sem ecos. O mundo trama lá fora. Eu estremeço aqui dentro. Calo-me diante do desconhecido. Sei que a um sinal devo partir. Devo partir de mim mesma em busca do dia. Dia de sol em que, por certo, encontrarei os raios da felicidade. Felicidade que apagará o véu da tristeza e aquietará meu coração.